Escola de Ativismo • As águas são do povo: 5 episódios da luta pelos recursos hídricos na América Latina

Por Danilo Mekari*

Doze anos após ser oficializado como direito humano, acesso à água na região mais rica do mundo em termos hídricos ainda sofre percalços

Continente é marcado por luta dos povos por acesso digno aos recursos hídricos l Foto: Reprodução/Fundación April

O nascimento de um curso d’água é um dos mais potentes fenômenos da natureza. A água subterrânea, quando atinge a superfície, cria condições para o despertar de um riacho, que ganha volume e vazão para se transformar em rio, curso d’água que cumpre papel fundamental para a evolução da vida humana até finalmente desaguar no oceano. Mas o que acontece quando, ao invés de aflorar, essa água vai gradualmente desaparecendo?

O secamento de rios é um evento cada vez mais comum: recentemente, o Sambingo, desapareceu na Colômbia vitimado por mudanças climáticas e mineraçãoEm Goiás, cinco rios sumiram em meio à expansão do agronegócio. A secagem acontece por razões diversas como ocupação irregular do solo, intensidade dos períodos de estiagem, aquecimento global, poluição e uso de água para abastecimento de indústrias e do agronegócio.

Na América Latina, para tornar a situação ainda mais complexa, os processos de privatização têm dificultado o acesso universal ao recurso natural. É no subcontinente que está concentrada a maior porcentagem de reservas de água doce do mundo, impulsionada por inúmeros rios caudalosos e pelos maiores aquíferos do planeta: o Guarani (que engloba Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) e o Alter do Chão (localizado na Amazônia).

Em 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu que o acesso à água potável e ao saneamento “é um direito humano essencial para o pleno gozo da vida e de todos os direitos humanos”. Hoje, 12 anos depois, esse direito está longe de ser concretizado na América Latina, com o abastecimento de grandes e médias cidades sendo repassado para empresas privadas e a transformação da água em mercadoria e, sobretudo, em ativo financeiro em busca de rentabilidade.

Para celebrar o Dia Mundial da Água, neste 22 de Março, a Escola de Ativismo reúne histórias de mobilização popular pelo direito à água na América Latina, desde acontecimentos que deixaram legados importantes, conflitos que ainda seguem em curso e personagens que simbolizam avanços naquele que é um dos direitos mais fundamentais para toda a humanidade: o acesso à água limpa.

Correntina: em defesa da água como fonte de vida

Manifestantes tomam as ruas de Correntina em defesa da água para o povo l Foto: Thomas Bauer/ Divulgação CPT-BA

De toda a água propícia para consumo disponível no mundo, aproximadamente 12% se encontra no Brasil. E, no país, a região oeste da Bahia é especialmente rica em recursos hídricos. Porém, em um mundo onde a lógica mercantilista se expande a qualquer custo, onde há água em abundância, há conflito.

Cercada por vários rios, a cidade de Correntina é alvo de disputas em torno de suas riquezas naturais, que remontam aos anos 1970, quando pistoleiros e grileiros chegaram ameaçando a população e cercando terras. O acirramento, contudo, veio com a crescente captação de água feita por empresas transnacionais de agronegócio, diretamente responsável pela morte de ao menos 29 corpos d’água da região, de acordo com levantamento feito pelo pesquisador Tássio Cunha.

Enquanto os pouco mais de 30 mil correntinenses enfrentam dificuldades de acesso à água, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) do estado cedeu a uma fazenda do agronegócio, em 2015, o direito de retirar do rio Arrojado uma vazão equivalente a 106 milhões de litros de água por dia, quantidade que seria suficiente para abastecer a pequena cidade durante um mês.

O setor do agronegócio consome 78,3% das águas brasileiras, segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Em levantamento inédito, divulgado em dezembro de 2021, a Agência Pública revelou que o estado baiano concedeu gratuitamente ao setor 1,8 bilhões de litros de água por dia em outorgas hídricas. O montante poderia abastecer diariamente a cidade de Pequim, na China, uma das maiores metrópoles do mundo.

Nesse cenário, a mobilização de um grupo de camponeses e trabalhadores locais ocupou duas fazendas do agronegócio, em novembro de 2017, e chegou a levar 10 mil pessoas às ruas em defesa da água como fonte de vida, e não de lucro. “Ninguém vai morrer de sede nas margens do rio Arrojado. E ninguém também pode morrer de sede nas margens de rio nenhum. A sociedade tem que lutar pela vida. E a luta pela água é essa”, afirmou Jamilton Magalhães, da Associação de Fundo e Fecho de Pasto de Correntina, à Articulação Semiárido Brasileiro (ASA).

A mobilização reuniu comunidades da região, além de organizações da sociedade civil e sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais para denunciar a crescente devastação do bioma causada pelo agronegócio, incluindo a depredação de rios e do aquífero Urucuia. O movimento, contudo, foi criminalizado e há diversos relatos de abusos da polícia.

Durante a última década, o número de conflitos pela água no território brasileiro cresceu mais de sete vezes. Em 2011 foram 69 ocorrências, ao passo que em 2019 a quantidade chegou a 502, indicando como a disputa pela água ganhou força no país. São cerca de 80 mil famílias envolvidas nesses conflitos, em dados do relatório Conflitos do Campo Brasil, publicado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em 2020.

Pantanal: vidas e rios ameaçados por barragens

Rio Paraguai em período de seca: Pantanal sofre com diminuição de água nas superfícies l Foto: Reprodução/Expressão Notícias

Outra disputa ocorre hoje no Pantanal, a maior área alagada do mundo, que engloba os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. As 57 hidrelétricas em operação na bacia do rio Paraguai – e a possível construção de mais 80 – ameaçam ainda mais os recursos hídricos do bioma, que desde 1985 já perdeu 74% da superfície de água, conforme dados do MapBiomas.

O fluxo natural de água na bacia dos rios, característica eliminada pelas barragens, é fundamental para a segurança alimentar e a subsistência de várias pessoas, ao mesmo tempo que sustenta uma enorme diversidade de espécies dentro e fora da água. No Brasil, os grupos mais afetados em conflitos pela água foram pescadores e ribeirinhos, envolvidos em mais da metade das ocorrências.

Na bacia do rio Jairu (MT), que já conta com seis barragens, houve uma queda significativa no ecossistema de peixes, impactando diretamente as condições de subsistência de populações ribeirinhas e pescadores.

“Nós vivemos desse rio. Meu pai criou nós tudinho, nascemos aqui e vivíamos da pesca. Hoje em dia meus filhos, meus netos, não estão comendo o peixe como nós comia [sic]”, declarou Maria José Pires da Veiga, ribeirinha da comunidade do Limão, banhada pelo Jairu, em vídeo realizado pelo Comitê Popular do Rio Paraguai/Pantanal. “Falei pra eles lutar, né? Pra não acontecer o que está acontecendo com nós [sic].”

Ameaças de hidrovia: “Se acabar a manifestação, acabam os peixes”

Na escalada de agressões às águas pantaneiras, em janeiro, foi autorizado pelo Conselho de Meio Ambiente (Consema) de Mato Grosso a construção do Porto de Barranco Vermelho, em Cáceres, município próximo à nascente do rio Paraguai. A obra faz parte de um projeto de intervenção de impacto na natureza em prol do transporte de mercadorias ainda mais amplo: a Hidrovia Paraguai-Paraná, concebida nos anos 1980, e considerada a principal rota aquática da região sul do Brasil, essencial para a exportação de matérias primas como a soja.

Para o porto sair do papel, contudo, será necessário alagar diversos trechos do rio Paraguai para que ele suporte o fluxo de embarcações, segundo o Observatório do Pantanal. Ainda será preciso retificar as margens do rio e realizar a dragagem do leito em diversos pontos, inclusive em refúgios da biodiversidade pantaneira, como a Reserva Ecológica Taiamã.

A autorização dada pelo Consema passou por cima de mais de 100 inconsistências no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) apontadas pela Associação Cultural e Socioambiental Fé e Vida. Também não foram escutadas as opiniões de comunidades tradicionais como ribeirinhos, pescadores e indígenas que vivem às margens do rio, em descumprimento à Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Ação contra a instalação do porto e da hidrovia reúne dezenas de barcos no rio Paraguai. l Foto: Reprodução/RD News

Diversas organizações sociais e populares têm se unido para combater o projeto, com um ato em defesa do rio e do Pantanal marcado inclusive para este Dia Mundial da Água. Uma carta pública foi assinada por 168 entidades locais, nacionais e internacionais para questionar a autorização ao porto. Reforçando a importância dessa mobilização, como bem lembrou um pescador entrevistado em pesquisa da Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT), “se acabar a manifestação, acabam os peixes”.

A advogada Mariana Lacerda é coordenadora executiva do Grupo Pesquisação, uma das organizações que participa da mobilização para barrar o porto e a possibilidade de navegação industrial no rio Paraguai. Em conversa com a Escola de Ativismo, ela cita a necessidade de aperfeiçoamento da legislação referente à gestão da água, principalmente no que tange ao uso coletivo deste recurso. “É importante a comunidade estar nos espaços de decisão, como conselhos estaduais e federais sobre recursos hídricos, nos quais infelizmente as cadeiras direcionadas à sociedade civil sofreram cortes nos últimos anos. Os comitês de bacias, no entanto, já são espaços em que é possível fazer a diferença em relação à gestão da água.”

Lacerda afirma que um dos trunfos da mobilização popular em defesa da água no Pantanal é o envio de informações e denúncias a órgãos como os Ministérios Públicos Estadual (MPE) e Federal (MPF). “Temos no setor judiciário uma possibilidade de garantir o direito à água. Afinal, temos Constituição e leis que precisam ser respeitadas, e quando entramos no campo jurídico é justamente para denunciar que elas estão sendo ignoradas.”

O legado da Guerra da Água na Bolívia

Guerra da Água na Bolívia foi marco importante na luta pelo direito ao recurso natural na América Latina. Crédito: Reproducion/Arquivo Opinión

Um dos principais marcos da luta pela água na América Latina aconteceu na virada do milênio, quando o então presidente boliviano Hugo Banzer vendeu a companhia municipal de água de Cochabamba para um consórcio transnacional. Habitantes da cidade, trabalhadores, camponeses e indígenas se levantaram contra a venda, que de tão absurda passou a cobrar pela água que os moradores retiravam dos rios e até mesmo de seus próprios poços artesianos. A intensa mobilização popular barrou a privatização ao transformar a cidade em uma imensa trincheira popular auto-organizada. Eles conseguiram expulsar o consórcio e revogar a então nova Lei de Águas, marcando fortemente na memória coletiva do país que a água é do povo.

Naqueles dias, a resistência venceu, mas seguem até hoje os desafios sociais frente à privatização de recursos naturais, como observa Silvia Molina, pesquisadora do Centro de Estudios para el Desarrollo Laboral y Agrario (CEDLA), instituição que dissemina conhecimento crítico sobre questões trabalhistas com impacto no debate público e na ação dos trabalhadores bolivianos. “Podemos dizer que a mobilização pelo bem comum, naquele momento, derrotou uma transnacional, mas não avançou diante da privatização”, afirmou.

Muito antes do episódio, que ficou conhecido como Guerra da Água, os cochabambinos sofriam com escassez do recurso natural. Durante anos não houve investimento público adequado para ampliar a infraestrutura hídrica ou para captação alternativa de água. Assim, a população buscou autonomamente soluções para a falta de água, como sistemas de irrigação comunitários. Apenas na zona sul de Cochabamba, cerca de 100 sistemas comunitários atendem aproximadamente 200 mil pessoas.

“Cochabamba tem problemas de água há muitos anos”, relata Molina, “e há projetos de grande escala para abastecer a região que até hoje não avançaram. Atualmente vemos em bairros pobres e de classe média soluções como tanques de água e cisternas, ambos operados por agentes privados, que cobram um valor ao menos cinco vezes maior do que é cobrado pelo governo.”

A companhia municipal de água, no entanto, sofre com ineficiência e problemas relacionados à corrupção. “A mobilização pela água trouxe muitos avanços, mas ela precisa continuar forte e organizada para seguir evoluindo no direito à água, investindo em processos de formação e politização e entendendo que, após atingido o objetivo inicial, é preciso enxergar os desafios que vêm adiante – como participação em tomada de decisões, fiscalização e controle – como partes essenciais desse processo em busca de um bem comum e coletivo.”

Berta Cáceres e o despertar da humanidade

Berta Cáceres: defensora da água e da vida. l Foto: Prachatai/Flickr

Este texto não poderia terminar sem lembrar de uma das mais importantes defensoras das águas que a América Latina já teve. Principal liderança do Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (COPINH), Berta Cáceres foi uma das maiores vozes contrárias à instalação da hidroelétrica de Agua Zarca, no rio Gualcarque, localizado no departamento de Santa Bárbara. Liderada pela empresa hondurenha DESA, a obra impactaria o fluxo natural de uma fonte de água e alimentos para comunidades indígenas de Honduras, que em nenhum momento foram consultadas sobre a intervenção. Ademais, o rio Gualcarque é sagrado ao povo indígena Lenca, do qual Berta fazia parte.

Ao resistirem ao projeto, Berta e outras lideranças foram alvos constantes de perseguições e ameaças. Em 2009, quando um golpe militar depôs o então presidente Manuel Zelaya, uma série de práticas autoritárias e antidemocráticas ganharam espaço em Honduras. Já naquele ano, inclusive, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos incluiu a ativista em uma lista de pessoas que corriam risco de vida.

O cenário de perseguição política em Honduras era tão grave que, entre 2010 e 2014, 101 ativistas ambientais foram assassinados no país, segundo relatório da Global Witness. E não demorou para Berta ser o próximo alvo, brutalmente assassinada por defender os rios de seu país, em 2016, aos 44 anos. As investigações confirmaram que o crime foi ordenado pelos diretores da DESA, em aliança com forças de segurança hondurenhas. Seis anos depois, o COPINH segue em busca de justiça para o caso.

Reconhecida internacionalmente com o Prêmio Goldman em 2015, distinção dada para ativistas ambientais, Berta Cáceres definiu sua luta em um discurso curto e potente, em palavras que fluem como as correntezas de um rio livre e vivo:

“Despertemos, humanidade! Já não há tempo. Nossas consciências serão abaladas pelo fato de estarmos apenas contemplando a autodestruição baseada na predação capitalista, racista e patriarcal. O rio Gualcarque nos chamou, assim como os outros rios que estão seriamente ameaçados. Devemos acudi-los. A Mãe Terra militarizada, cercada, envenenada, onde os direitos elementares são sistematicamente violados, exige que atuemos. Construamos então sociedades capazes de conviver de forma justa, digna e para a vida.”